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Olho para o livro que me emprestaste

e que nunca devolvi. Também ele olha para mim.

Tem as marcas da tua leitura, certos vincos

no branco das páginas, manchas subtis e difusas

como nuvens, restos das tuas mãos ou do teu olhar.

Espero que não penses sobre mim o que penso

sobre as pessoas que nunca me devolveram

os livros que emprestei. O que pensarás tu

sobre mim? Nunca li o livro que me emprestaste,

preferi sempre imaginá-lo. Suponho que ainda

se sinta estrangeiro entre os meus livros,

mas agora é demasiado tarde para devolvê-lo,

há tanto tempo que não falamos, não sei

se ainda guardo o teu número de telefone.

O que pensarias se agora,  a despropósito,

te quisesse devolver o livro? Havias de pensar

que queria alguma coisa. Sabes, fico com o teu

livro porque não quero nada. Provavelmente,

nunca te devolverei este livro, fará parte do

meu espólio, é a última ligação que temos.

 

José Luís Peixoto, in Regresso a Casa

 

 

O mais recente livro de poesia de José Luís Peixoto, está disponível aqui:

Portugal
 
Brasil
 
México

 

Olhamo-nos nos olhos pela internet.

 

Eu transmito-te este domingo à tarde,

a voz do vizinho através da parede.

 

Tu transmites-me a distância que existe

depois do que consigo ver pela janela.

 

Durante a noite mudou a hora e, no entanto,

continuamos no tempo de ontem.

 

Como é raro este domingo, não podemos

garantir que amanhã seja segunda-feira.

 

O futuro perdeu-se no calendário, existe

depois do que conseguimos ver pela janela.

 

O futuro diz alguma coisa através da parede,

mas não entendemos as palavras.

 

Lavamos as mãos para evitar certas palavras.

 

E, mesmo assim, neste tempo raro, repara:

tu e eu estamos juntos neste verso.

 

O poema é como uma casa, tem paredes

e janelas, é habitado pelo presente.

 

Olhamo-nos nos olhos pela internet,

estamos verdadeiramente aqui.

 

O poema é como uma casa,

e a casa protege-nos.

 

José Luís Peixoto, 29 de Março de 2020

 

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Não é um gato

07.03.20

 

Não é um gato, é uma gata.

Compreendo que seja mais fácil

reduzir todos os gatos a gatos,

mas peço-lhe que, por fineza,

abra uma exceção. É uma gata,

não amamentou gatinhos,

ou porque não teve escolha,

ou, mais provavelmente,

porque não quis. É uma gata,

aluada em certas noites,

a lamber-se sem vergonha,

a desfrutar do seu próprio cio.

Compreendo que seja mais fácil,

sei que não fez por mal, nunca

ninguém faz por mal, já reparou?

Mas peço-lhe que preste atenção

e, no futuro, não volte a cometer

esse erro tão comum. É uma gata,

não é um gato, é uma gata.

 

José Luís Peixoto, inédito

 

 

 

Encantar-te-ás com os poetas até conheceres um.
Com calças de poeta, camisa de poeta e casaco
de poeta, os poetas dirigem-se ao supermercado.

As pessoas que estão sozinhas telefonam muitas vezes,
por isso, os poetas telefonam muitas vezes. Querem
falar de artigos de jornal, de fotografias ou de postais.

Nunca dês demasiado a um poeta, arrepender-te-ás.
São sempre os últimos a encontrar estacionamento
para o carro, mas quando chove não se molham,

passam entre as gotas de chuva. Não por serem
mágicos, ou serem magros, mas por serem parvos.
A falta de sentido prático dos poetas não tem graça.

 

 

José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis (2008)

 

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Por todos aqueles que se dirigiam à vida, que só esperavam vida

e que, sem saber, caíram desamparados no abismo opaco da morte;

por todos aqueles que acordavam de manhã, que se alimentavam

de ilusão, invencíveis perante a sua teimosia inocente, e que, na

dobra de um instante, desprotegidos da solidão, acordados a meio

de um sonho, caíram desamparados no abismo opaco da morte;

por todos aqueles olhares que refletiam a luz do dia, montras de

segredos, rostos que lembraremos com um sorriso brando e que,

sem motivo, caíram desamparados no abismo opaco da morte;

estas palavras frágeis e inúteis, este tempo breve e insuficiente.

Existiram como nós, foram gente como nós, sentiram como nós.

Por todas as palavras que disseram, pela forma humana como as

pronunciaram, pela memória incandescente da sua voz, pelo seu

tempo de pessoas, estas palavras incapazes, este tempo incapaz

e o caminho x ou y que escolhemos para segui-los.

 

 

José Luís Peixoto, inédito

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

 

 

poema de José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas

 

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(edição brasileira, Dublinense) 

 

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 (edição portuguesa, Quetzal)

um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o príncipio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.

 

 

poema de José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas

 

 

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(edição brasileira, Dublinense) 

 

 

 

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 (edição portuguesa, Quetzal)

o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.

 

 

poema de José Luís Peixoto, in A Criança em Ruínas

 

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(edição brasileira, Dublinense) 

 

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(edição portuguesa, Quetzal) 

 

Não há motivo para te importunar a meio da noite,

como não há leite no frigorífico, nem um limite

traçado para a solidão doméstica.

 

Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece

antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens

direito a um subsídio de paz.

 

Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te

importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas

de manhã cedo.

 

Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o

o direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa

evidência me matar agora.

 

E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:

porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:

sabes que horas são?

 

Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda

mais comprida, com a insónia, com as palavras

a despegarem-se dos pesadelos.

 

 

poema de José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis

 

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