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Escolhe uma entre as mil árvores entrançadas

que se penduram em escarpas de ilhéus

sobre as águas planas da Baía de Phang Nga.

 

Enquanto passas no teu barco de madeira,

envia-lhe em silêncio todo o bem-querer.

Ela entenderá, essa é a língua das árvores.

 

Deseja-lhe com sinceridade que seja feliz,

que apenas conheça a vida leve e justa,

que os pensamentos não a atormentem.

 

Assim, quando estiveres longe, esta árvore

ainda se lembrará de ti. Será manhã sobre

este mar que te impressionou, será noite

 

talvez onde estiveres. Se o peso da angústia

não te cegar, se não te afogares no peso

da angústia, talvez te lembres dela também.

 

O mais certo é que nunca se voltem a ver.

Mesmo que regresses a esta baía, ela será

indistinta entre mil árvores entrançadas,

 

e tu serás indistinto entre mil que passam

em barcos de madeira como este, que levantam

a mesma espuma, que deixam o mesmo rasto.

 

Mas, para sempre, no grande tempo absoluto,

na ordem secreta, final e indestrutível, ela será

a tua árvore e tu serás a pessoa dela.

 

 

José Luís Peixoto, inédito

 

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Temas:

 

 

A aldeia inteira estava entregue a uma velha.

Homens, mulheres e crianças saíram cedo

pela estrada de terra e pedras em que cheguei.

 

Supor que apanhava uma tribo nómada em casa,

eis a minha ingenuidade. A velha não desvia o olhar,

essa parece-lhe uma boa maneira de passar a manhã.

 

Meia dúzia de cães anestesiados, demasiado calor,

roupas a secar, já secas, atiradas sobre bambus,

montanhas a rodearem-nos de sons naturais.

 

Na cidade, contaram-me que os membros da tribo Mlabri

mudam de lugar assim que amarelecem as folhas

de bananeira que usam para cobrir os telhados.

 

Achei uma bela história, antropológica, mas a vida

não se compadece. Telhados cobertos por folhas de zinco

demoram bastante mais tempo a amarelecer.

 

As crianças estão na escola. Os homens e as mulheres

estão nas plantações de milho, deixaram casas desertas,

vestígios de fogueiras e pedaços de motorizadas.

 

A velha e eu formamos uma tribo inédita. Olhamos

um para o outro. Às vezes, passa uma brisa muito leve,

arrasta embalagens vazias de rebuçados e pó.

 

 

José Luís Peixoto, inédito

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Temas:

TEXTO E FOTOGRAFIA DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO

 

O rio Emajõgi passa muito devagar por Tartu. Talvez queira assistir com tempo à vida que se ergue nas margens, as fachadas limpas dos edifícios, cores suaves que recebem a luz desta hora, as torres pontiagudas das igrejas, espetadas no céu. A superfície do rio não se deixa perturbar, é uma superfície uniforme. Aqui, na cidade velha, vejo o parque do outro lado, as árvores nuas deste outono, quase inverno, o rio reflete-as e cria um mundo ao contrário: árvores que crescem para baixo, recortadas sobre um céu branco. É preciso inclinarmo-nos sobre as águas para apreciar esse céu.

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Tartu é a segunda cidade da Estónia, a principal da região sul do país. É considerada a capital universitária. Essa é uma característica que se sente nas ruas. Grupos de rapazes e raparigas enfrentam a tarde com grandes casacos, gorros, cachecóis e luvas. Mesmo assim, às vezes, levantam as vozes para rir-se de alguma coisa. No entanto, quando o fazem, mantém sempre a polidez. Os estónios orgulham-se da sua civilidade.

No nosso canto da Europa, o que sabemos nós sobre este canto? Desde uma ponta do mapa até à outra, precisamos de atravessar todo o continente para chegar aqui. Nessa viagem, sobrevoamos várias culturas fortes, vários idiomas da família do nosso ou não. É fácil pararmos no caminho. É fácil que, em algum momento dessa travessia, não continuemos: fico já aqui.

A Europa é uma enorme barreira entre Portugal e a Estónia. Não se trata apenas de distância. Há países que conhecemos muito melhor e que estão bastante mais longínquos, noutro hemisfério, que aproveitam o verão enquanto suportamos o inverno.

Nas ruas, passo por homens de mão dada com os filhos, crianças pequenas a falarem em estónio. Passo por mulheres com casacos de peles, passo por mais grupos de universitários. O que estarão a dizer? Neste canto da Europa, o que saberão sobre o nosso canto?

As faculdades da universidade ocupam edifícios enormes. Olho para o seu interior através de janelas muito altas. A luz é amarela e, lá dentro, as pessoas estão sem casaco. Dentro das casas, existe outro mundo.

Ontem, aceitei um convite para jantar. Descalcei os sapatos à entrada. Enquanto as crianças brincavam sobre o tapete, a televisão ligada e sem som, coloquei essa pergunta: o que pensam sobre nós? Não sei se entendi completamente as respostas. Às vezes, as palavras têm significados escondidos, têm sombras, principalmente quando não estamos a comunicar na nossa língua.

Em qualquer dos casos, o rio Emajõgi não altera a sua velocidade, desliza, longo corpo. Atrás de mim, uma estátua com músculos de bronze, representa a liberdade, recorda aqueles que caíram na guerra da independência (1918-1920). Esses são valores que também conhecemos no nosso canto da Europa: liberdade e independência.

Os países e as cidades nunca são uma única coisa: Estónia, Tartu. Contemplo este outono, quase inverno e lembro que, ontem, durante o jantar, disseram-me que, nesta época do ano, costuma já ter nevado. Não duvido, este céu parece bem capaz disso. Mas aqui, à minha frente, tenho um barco de madeira com mesas e cadeiras no convés. Está já à espera do verão.

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Gorongosa

10.10.18

TEXTO DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO // FOTOGRAFIA DE PATRÍCIA SANTOS PINTO

 

Os animais não esqueceram. Quando percebem que estamos a aproximar-nos, famílias inteiras de macacos fogem diante de nós, trepam aos ramos mais altos; as impalas saltam na distância, traçam arcos perfeitos, é elegante o medo que as leva; até os leões, perante o nosso avanço cauteloso, se mudam para uma sombra mais distante.

 

Às sete da manhã, a terra ainda está fresca. O capim fura uma neblina rasteira que não ultrapassa a base dos troncos. As árvores sabem muito, desenham uma paisagem de riscos que se estende até onde os olhos aguentam ver. No ar limpo e no silêncio, o cheiro fértil da terra e o som de uma enorme multidão de insectos, aves que dispõem deste céu sem fim. O início do dia parece o início do mundo e, no entanto, há rastos que o vento apagou nos caminhos, mas que ainda se sentem.

 

A casa dos leões não é usada há muito tempo. Hoje, só o simbolismo da sua história tem utilidade. O ano de 1940 ficou assinalado a cimento pelos portugueses que a levantaram. Então, destinava-se a receber os visitantes que vinham caçar. Com milhares de hectares à escolha, decidiram construir a pouca distância do rio e, na época das chuvas, o edifício ficou inundado. Dois anos depois, quando os homens o abandonaram, os leões reclamaram-no. Foi a partir daí que, ocupada por leões que subiam pelas escadas até ao terraço ou que permaneciam no seu interior, começaram a chamar-lhe "casa dos leões". Essa época terminou quando as paredes foram atravessadas por rajadas de tiros, quando os degraus das escadas foram destruídos. Durante os anos da guerra civil, os animais selvagens foram dizimados para servir de alimento aos militares. Em 1992, não houve cessar-fogo para os animais da Gorongosa porque, a partir daí, chegaram os caçadores furtivos.

 

Quando passamos pela casa dos leões, são estas memórias que se distinguem naquelas ruínas sujas.

 

Às vezes, quando passamos, há animais que ficam parados a olhar para nós. Fixam-nos com a mesma curiosidade com que os fixamos a eles. Há tanto que queremos dizer-lhes, mas esse instante dura pouco. Distinguem-nos um gesto, visível ou invisível, e estremecem numa corrida que parece sem fim ou direção. Com pena, ficamos a vê-los afastarem-se. Talvez um dia, voltemos a merecer a confiança dos animais.

 

A tarde é tingida por um calor seco. Como uma nuvem de pó, ar espesso e amarelecido pelo sol. O som dos insetos que marcam o horizonte é agora diferente. As raízes dos embondeiros continuam a segurar a terra.

 

Quando seremos capazes de dar valor ao que é realmente importante? É fácil esquecê-la, subestimá-la, mas é sempre a terra que está lá, por baixo de tudo o que fomos capazes de construir, por baixo de todo o alcatrão ou cimento. Quando seremos capazes de ser consequentes com aquilo que é inegável? A terra não depende de nós, a água não depende de nós, a luz não depende de nós; somos nós que dependemos da terra, da água, da luz. Somos nós que dependemos da natureza.

 

O sol vermelho desce atrás das árvores. Os ramos são veias e artérias de encontro a um céu de cores que vão mudando muito devagar. Tudo parece acontecer a essa velocidade. Este silêncio está por baixo de todos os sons com que enchemos o planeta.

 

A Gorongosa é esperança. Envolvendo as comunidades locais, contribuindo para o seu desenvolvimento e restaurando a vida selvagem no parque, o projeto de recuperação da Gorongosa é esperança em Moçambique, mas não só; é esperança em África, mas não só; é esperança no mundo inteiro.

 

A noite chega com todas as estrelas. O céu imenso, polvilhado. Medimos o nosso tamanho a olhar para este céu.

 

A vida é muito maior do que apenas a nossa vida.

 

A terra prepara-se para um novo dia. Os animais sentem-na debaixo das patas, sabem que dependem dela para tudo. Da mesma maneira, sentem a noite. Sabem que têm de sobreviver-lhe, porque os animais não esqueceram. Os leões não querem guerra. Os gnus não querem guerra. Os javalis-africanos não querem guerra. Os pala-pala não querem guerra. Os elefantes não querem guerra. Os animais, todos eles, só querem viver. Os animais não esqueceram.

 

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A maior herança

20.11.15

TEXTO DE JOSÉ LUÍS PEIXOTO

 

Discordo sempre quando ouço alguém dizer que as crianças não aproveitam as viagens. Ainda não têm idade para aproveitar, diz essa pessoa que pode ter muitos rostos diferentes. Não consigo entender esse ponto de vista. Parece-me que as crianças aproveitam as viagens de forma diferente, desfrutam de aspetos que nós, muitas vezes, já esquecemos de prestar atenção.

 

As crianças não fingem interessar-se por aquelas histórias que os guias repetem, com mais ou menos rotina na voz, e que toda a gente esquece após algum tempo, se é que chegam a ouvi-las. Em vez disso, as crianças deixam-se invadir por cheiros novos, cores novas, sons novos, estímulos que alargam a paleta daquilo com que contam a partir daí: na sua consciência, no modo como desenham o mundo e o avaliam.

 

As crianças não são testemunhas, são descobridores. Quando chegam a um lugar que desconhecem, não deixam que o peso do que sabem molde o que as espera. Levam os sentidos abertos, prontos a serem marcados para sempre.


Se perderem essa disponibilidade, nunca aprenderão a viajar e, em consequência, nunca serão capazes de desfrutar dessa vantagem. Quando falo de viajar, não me refiro apenas à oportunidade de ir muito longe, a outros países ou continentes, refiro-me à curiosidade pelo mundo, à capacidade de se surpreender com o que é diferente, de não temer essa diferença, de desejá-la.

 

Ainda no carrinho de bebé, procurei fazer várias viagens com os meus filhos, todas as que foram possíveis. Em tempos, os meus pais fizeram o mesmo comigo. Com os meus filhos, as pessoas que viajavam ao nosso lado no avião tiveram de ter paciência com o bebé a chorar às vezes. Com os meus pais, nunca hei de esquecer o cheiro do carro de madrugada. Num e noutro caso, havia o fascínio pelo caminho e a expetativa por tudo o que imaginávamos acerca do lugar para onde nos dirigíamos.

 

Aquilo que quero deixar aos meus filhos são viagens. Como outros acumulam imobiliário e bens, quero que sejamos capazes de acumular momentos e lugares onde estivemos vivos e juntos. Essa será a fortuna que partilharemos. Quando falo de viajar, refiro-me a esse prazer de olhar em volta e saber que estamos ali, sentirmo-nos. Mais do que uma promessa, viajar é a certeza de estar vivo. Por isso, aquilo que desejo aos meus filhos é cidades e pessoas, montanhas e horizonte, desejo-lhes Nova Iorque e a Amazónia, desejo-lhes São Petersburgo e o entardecer lento da savana africana, desejo-lhes sorrisos da Tailândia e sake de Quioto.

 

Ao mesmo tempo, desejo que nunca percam a capacidade de ir ali ao fundo e, da mesma maneira, surpreenderem-se com o que lá está, com a luz e a temperatura ligeiramente diferentes. Desejo que se apaixonem sempre, por tudo. E que sejam capazes de passar essa eletricidade aos seus filhos, meus netos por nascer, porque é ela que dá ânimo e sentido: combustível e estrutura da vida. Aquilo que desejo aos meus filhos é que a variedade de opções que o mundo lhes oferece nunca deixe de deslumbrá-los.

 

José Luís Peixoto

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Um dia, vou cansar-me de querer conhecer o mundo. Nessa altura, talvez me pareça estranho que alguém saia de casa, deixe o morninho, para discutir preços com taxistas ou olhar para ementas de restaurantes onde não percebe uma única palavra.

 

Às vezes, parece-me que conheço demasiados caminhos. Para ir a certos lugares, não tenho de pensar. Entro no carro e a minha cabeça ocupa-se de qualquer assunto que, naquele momento me pareça importante. Conheço tão bem esses caminhos que quase me surpreendo quando chego ao destino. Às vezes, quero ir a lugares ligeiramente diferentes, distraio-me por um momento e, quando reparo, já estou a fazer esses caminhos de novo. O hábito enganou-me. Então, preciso de voltar atrás, raramente necessito de GPS para encontrar a direcção certa.

 

Viajar seja para onde for, querer conhecer o mundo, é acreditar que todas as ruas fazem parte de um labirinto mas que não é possível perdermo-nos nele. Está-se sempre em algum lugar. A rosa dos ventos pode ser colocada em qualquer sentido, continuará sempre a ser uma rosa dos ventos.

 

Na Tailândia, nenhuma comida tem o sabor das sopas da minha mãe. Na Amazónia, nenhuma paisagem se parece com os campos à volta da terra onde nasci. Nas ruas de Helsínquia, ninguém entende a língua em que penso e eu, estrangeiro, tenho dificuldade até de distinguir palavras na amálgama de sons que essas pessoas dizem quando vão, por exemplo, a conversar nos transportes públicos.

 

Um dia vou cansar-me dessa surpresa. Conheço bem o conforto do meu sofá, com mantas em fevereiro, onde poderia passar tardes inteiras a ver programas da televisão portuguesa, com anúncios portugueses, com as notícias portuguesas a começarem à hora certa: pip, pip, piiii. Sei bem o que é atender o telefonema de um amigo que me diz: vem cá. Sei bem o que é poder ir ter com ele naquele momento, estar ao lado dele depois de minutos. Também sei o que é sentir que os amigos deixaram de ligar. A pouco e pouco, convencem-se de que nunca estou, nunca posso, não vale a pena ligar, não vale a pena insistir.

 

Sim, um dia vou cansar-me de querer conhecer o mundo, mas hoje ainda não é esse dia. Sinto uma espécie de tontura só de começar a conceber todos os lugares onde posso ir. Tenho os sentidos ávidos por tudo aquilo que me espera. Não tenho qualquer receio de estar sozinho, sem mapa, no centro de Singapura, numa avenida de Caracas, diante de uma paisagem do Alasca. Anseio por esse momento.

 

Quero aterrar em todos os aeroportos do mundo, quero conversar por gestos com gente de todos os países, quero provar o sal de todos os oceanos, senti-lo a cristalizar-se na pele. É muito fácil que chegue um dia em que deixe de acreditar em tudo o que acredito agora. A vida é composta por materiais bastante mais transitórios do que estamos dispostos a admitir. Mas, até lá, sempre que esteja diante de uma ementa onde não perceba uma palavra, continuarei a fechar os olhos e a pedir a primeira coisa onde deixe cair o meu indicador.

 

 

 

José Luís Peixoto, in Revista Volta ao Mundo (Abril 2014)

 

O meu lugar

04.08.13

 

 

Quando era pequeno, rodava sobre mim próprio com as pontas dos pés. Rodar-rodar-rodar: as formas a saírem dos contornos, as cores a misturarem-se demasiado rápidas e, depois, ao parar de repente, o chão como um barco debaixo da tempestade, a paisagem inteira a oscilar desgovernada, eu a tentar equilibrar-me e, ao mesmo tempo, criança, a apreciar esse caos. A seguir, a pouco e pouco, o horizonte abrandava e voltava a fixar-se.

 

Eu tenho um lugar. Por isso, nunca me perco no mundo imenso.

 

Posso estar a falar com a minha mãe, como há dois dias atrás, e ela diz-me: aquele sobreiro que fica entre o campo da bola e o Monte da Torre. E, entre tantos, eu sei exactamente qual o sobreiro a que se refere. Essa é a precisão com que sei o meu lugar. As ruas, calcetadas com paralelos, suportam o meu pensamento desde que nasci. Em gestos largos, os muros são caiados anualmente porque o branco precisa de renovação, a pureza é uma tarefa permanente.

 

Esses foram os anos em que viajou pelo mundo inteiro. Não sei que voz irá dizer esta frase sobre a minha vida neste tempo. O mais provável será ser eu próprio a dizê-la: Esses foram os anos em que viajei pelo mundo inteiro. Em qualquer dos casos, essa frase será dita quando já não aguentar o ritmo deste tempo, desta idade em que atravesso oceanos como se rodasse sobre mim próprio. Com os olhos cheios, quando paro de repente, o chão balança, a paisagem ondula. É então que o meu lugar, paz/certeza, me nivela.

 

Eu tenho um lugar. Por isso, nunca me perco no mundo imenso.

 

Com tantas viagens, como é que consegue escrever? Ouço esta questão de muitas vozes, em muitas línguas, vinda de pessoas que nunca se conhecerão umas às outras. Dou qualquer resposta que me pareça satisfazê-las rapidamente. Às vezes, nem preciso usar palavras, basta sorrir. Quem faz perguntas não está sempre interessado em saber as respostas.

 

No tom prosaico dessas conversas, seria difícil explicar que eu tenho um lugar, está sempre comigo. É visível e invisível. Há oliveiras centenárias agarradas a essa terra. Há uma forma de respirar que só é possível sob essa aragem. Há fontes de bicas fartas, onde jorra tudo o que amo e me ama.

 

Quando era pequeno, os campos eram enormes. Cresci mais do que podia imaginar e, no entanto, os campos continuam enormes. Entre o que me puxa de um lado e de outro, há o meu lugar a manter-me firme, a fornecer-me equilíbrio infinito. A diferença de forças é incomparável. Por isso, nunca me perco no mundo imenso.

 

Levo comigo uma origem e um destino. Levo comigo um sentido. Irreversível como um mergulho, não me perturbo. Eu tenho um lugar. Sinto que lhe conheço cada detalhe e, no entanto, todos os dias o exploro e lhe encontro novidade. No meu lugar, os sinos do adro dão as horas.

 

É difícil vermo-nos a nós próprios, sei bem. Falta a perspectiva da distância, os espelhos distorcem, o rosto com que nos olham está sempre tingindo pela cor que trazem por dentro. É também por isso que me faz tanta falta o meu lugar. Sem ele, talvez acreditasse no primeiro reflexo que me apresentassem. Sem ele, talvez dependesse desses humores para imaginar quem sou.

 

Assim, estou preparado para atravessar o mundo inteiro. E, se mais mundo houver, mais mundo será tocado pela minha pele. Mi-nha pe-le, palavras pronunciadas sílaba a sílaba. E nenhum continente é demasiado grande ou demasiado estéril para me impedir de atravessá-lo. E nenhum detector de metais conseguirá identificar o tamanho e os ângulos do lugar que levo comigo: amor. Repito: amor.

 

Eu tenho um lugar. Por isso, nunca me perco no mundo imenso.

 

Ainda rodo sobre mim próprio e, depois do mundo fosco, preciso de acreditar na nitidez que transporto, esse lugar meu, onde descanso e onde não sou um postal de tiragens sem fim, sempre deturpado um pouco mais, um pouco mais, milímetro a milímetro. Agradeço todo o contraste que consigo trazer para o caminho que construo. Não coloco limites nas temperaturas a que quero sujeitar os meus sentidos e nas lições que quero aprender. Mas felizmente, tenho o meu lugar. Acompanha-me como um deus.

 

 

 

 

José Luís Peixoto, in revista Visão (Agosto, 2013)

 




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