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Nestas noites de novembro, tenho dezasseis anos outra vez. Está a temperatura dessa idade e penso apenas em ti. O teu rosto surge nas superfícies opacas, sobretudo no escuro dos caminhos que uso para chegar à tua casa. A noite é tão respirável. Há um silêncio ameno pousado até nos ruídos mais bruscos. Tudo faz parte de um plano que não pode falhar porque tu és uma certeza. Estás à minha espera, eu sei.

 

Então, como hoje, vejo o teu rosto à janela. Enquanto desces, há um instante inteiro. Também nesse tempo, embora breve, tenho dezasseis anos. E fico mais sensível aos pequenos segredos que a cidade repete lá longe. Já transformados em brisa, tocam-me na pele. Distingo-lhes ainda uma réstia da sua forma, das suas arestas. Também a minha pele está mais sensível, prepara-se para a imagem do teu rosto.

 

Quando chegas à porta, salvas-me de qualquer coisa que, acredito nesse momento, estava quase a afundar-se em mim. O teu olhar acerta no meu e o tempo serve para contar a velocidade a que nos aproximamos. Os teus lábios levam-te. Durante esse primeiro beijo, a cidade inteira desaparece à nossa volta. Existe a noite, continua a existir.

 

Temos sede. Ainda não dissemos uma palavra e, no entanto, sabemos que a maneira como os nossos corpos se agarram, apertados pelos nossos braços, é a tradução literal daquilo que nos faltou durante todo o dia. Sem darmos conta, espalhámos essa saudade por Lisboa.

 

Só então, depois de nos vermos bem, dizemos as primeiras palavras. A tua voz é um gesto de bondade. A cidade, anoitecida, agradece a tua voz. Também eu gostava de saber agradecê-la assim, com esse tamanho. Comovo-me e, quando olhas para mim, posso dizer qualquer coisa. Tenho dezasseis anos e, por isso, posso dizer qualquer coisa. Posso até continuar a segurar-te nas mãos e alongar o silêncio.

 

É de noite. Há estrelas de certeza.

 

Novembro é o mês certo para te segurar nas mãos, memorizar-te os dedos para nunca mais esquecer. Temos os nossos segredos, vivemo-los. E, numa hora que escolhemos juntos, despedimo-nos sem medo. Teremos amanhã, teremos a próxima semana e o próximo ano mas, mais ainda, temos agora, este preciso momento em que estamos tão vivos.

 

Enquanto sobes as escadas e voltas para casa, a cidade está toda à minha disposição. Posso regressar pelo caminho que escolher. Às vezes, decido seguir pelo mais longo. Nessas noites, em silêncio, os meus pensamentos são como os grãos de pó que flutuam ao domingo, atravessados por raios de sol. Se os atravesso com um braço, esses pequenos pontos iluminados começam a mover-se em trajectórias diferentes. Como os meus pensamentos, mais leves do que o ar, mas, de repente, a chocarem frenéticos.

 

Caminho ainda com a tua voz em mim. Pedaços de expressões, o tom com que dizes certas palavras. A pouco e pouco, quando estou quase a chegar a casa, recupero a minha idade. Novembro continua e, por isso, deixo os dezasseis anos na rua. Conheço um lugar invisível para guardá-los. Amanhã, quando chegar a noite, talvez volte a usá-los. São perfeitos para te amar, namorada. 

 

 

 

José Luís Peixoto, revista UP (Novembro 2012)


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